O
apagão generalizado na infra-estrutura, além de causar tragédias como a de
Congonhas, solapa a competitividade das empresas e inviabiliza o crescimento do
país
Por Fabiane Stefano, Marcelo Onaga e Roberta
Paduan
EXAME
em 26 jul 2007
Ao
longo dos últimos anos, os brasileiros têm recebido demonstrações quase diárias
de nosso despreparo para crescer -- o desastre de Congonhas representou a
última, e mais dramática, evidência dessa situação. Entre as causas do
desempenho econômico brasileiro pífio nas últimas duas décadas -- incluindo o
atual crescimento abaixo da média mundial, mesmo durante uma das fases mais
pujantes da história do capitalismo -- está o nível de investimento quase inexistente
na infra-estrutura. Desde os anos 80, o Brasil deixou de construir estradas,
ferrovias, aeroportos, usinas, linhas de transmissão, portos, redes de
saneamento, hospitais, presídios -- artérias essenciais para a economia e para
a sociedade -- num ritmo minimamente compatível com as necessidades da
população. É claro que o preço seria cobrado. As artérias, sobrecarregadas,
estão obstruídas. É como se a infra-estrutura brasileira estivesse enfartando.
O
que levou a infra-estrutura do país ao fundo do poço? Raul Velloso,
especialista em finanças públicas que fez carreira na área de planejamento
estratégico de governos passados, é categórico: "Falta de investimento,
falta de capacidade de gerenciamento dos governos e um viés anti-setor
privado". Não é de hoje que o Brasil investe menos que o necessário em
infra-estrutura. Isso tem sido uma constante na história, mas a situação se
deteriorou gravemente nas últimas duas décadas. "Como o governo não pára
de gastar e, ao mesmo tempo, precisa mostrar um orçamento minimamente
equilibrado, está sempre sem dinheiro para investir no que importa",
afirma Velloso. Na área de transportes, os investimentos da União, que já foram
próximos de 2% do PIB em meados dos anos 70, têm se situado em torno de 0,2% do
PIB desde o início da década de 90. É patético. E não é nada diante do que
outros países vêm fazendo. Entre os emergentes, o Vietnã está investindo por
ano 6% de seu PIB em transportes; a China, 4%; e a Índia, 2%. Não estranha que
os três mantenham há anos um ritmo de crescimento que é de duas a três vezes
acima do brasileiro.
Por
aqui, o baixo investimento em infra-estrutura tem comprometido as
possibilidades futuras do país. O próprio governo reconhece. A prova mais
barulhenta disso foi o lançamento, no final do ano passado, do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), cuja essência são os investimentos nos setores
de base. O PAC, contudo, até agora não saiu do papel. De acordo com estudo
realizado pela consultoria MB Associados para a Associação Brasileira da Infra-estrutura
e Indústrias de Base (Abdib), as áreas de energia elétrica, transportes,
petróleo e gás, saneamento e telecomunicações precisariam receber no mínimo 88
bilhões de reais anualmente ao longo de uma década para conseguir sustentar um
crescimento econômico modesto, ao redor de 3,5%. Caso o país queira crescer
mais, esse número teria de aumentar. A realidade, no entanto, está longe do
ideal. A média nos últimos quatro anos ficou em 63% do necessário. Há setores
em que o quadro é ainda pior. Nos de saneamento e de transportes, o
investimento foi de um terço do mínimo. Somente a área de telecomunicações --
não por coincidência o setor que há uma década foi privatizado -- recebeu as
inversões necessárias.
Eis
aí mais uma lição que o Brasil, especialmente o atual governo, parece não ter
aprendido. "Ainda tem gente que acredita que dá para sair do atoleiro em
que praticamente todas as áreas de infra-estrutura foram parar sem o dinheiro
privado", diz Paulo Fleury, diretor do centro de estudos em logística do Instituto
Coppead, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em nenhum setor isso fica
tão claro quanto no de energia elétrica. Privatizado pela metade, o setor
entrou em pane justamente na parte retida pelo governo -- a geração. O apagão
de 2001 foi um dos maiores vexames da história do Brasil. A imposição de um
racionamento do consumo revelou a incompetência do governo Fernando Henrique
Cardoso em planejar e cuidar de um setor vital. Para desespero dos brasileiros,
a lição parece que não foi absorvida -- e o vexame pode ser repetido. Nem o
aperto agora na vizinha Argentina, que teve de cortar o fornecimento de energia
elétrica para indústrias e o de gás para os táxis, parece surtir efeito nas
autoridades brasileiras. Desde 2001, quase nada foi feito.
As
previsões para os próximos cinco anos indicam que, se São Pedro não ajudar
muito, em 2011 o país poderá enfrentar nova onda de cortes de energia. De
acordo com um estudo realizado pela consultoria PSR, considerando um
crescimento econômico próximo de 5% ao ano -- a meta perseguida pelo governo
--, a probabilidade de ocorrência de um novo apagão é de 28% em 2011. O risco
máximo aceitável pelas regras do setor elétrico é 5%. "Infelizmente, a
verdade é que ninguém hoje pode garantir que não vai faltar energia", diz
Mário Veiga, responsável pelo estudo e uma das maiores autoridades sobre o tema
no país. Ainda assim, o governo insiste que está tudo bem. "A situação é
de tranqüilidade", afirma Maurício Tolmasquim, presidente da Empresa de
Pesquisa Energética (EPE), do Ministério de Minas e Energia. Para ele, as
previsões de apagão escondem interesses comerciais: "Há muita gente que
torce por um cenário de crise, porque isso faz o preço da energia subir".
O DISCURSO DE
TOLMASQUIM LEMBRA o dos representantes do governo nos anos
anteriores ao apagão de 2001. Naquela época, ministros e técnicos contrariavam
os alertas de especialistas e atribuíam aos mesmos interesses comerciais os
avisos de perigo de apagão. Deu no que deu. Uma diferença importante é que,
agora, nem sequer há um ministro de Minas e Energia efetivo. Quem ocupa a pasta
é o "reserva" Nelson Hubner, que assumiu depois que Silas Rondeau
deixou o cargo, acusado de corrupção. Com interesses comerciais ou não, os
alertas podem ajudar o país a escapar de um novo racionamento, desde que as
medidas sejam tomadas a tempo. "Ainda há soluções para 2011, mas é preciso
tomar decisões rapidamente", diz Aloisio Vasconcelos, presidente da
fabricante de equipamentos francesa Alstom e presidente da Eletrobrás durante o
primeiro mandato do governo Lula. Decisões rápidas, no entanto, não têm sido a
marca do governo. Até hoje, passados oito meses desde a saída de Vasconcelos,
não foi escolhido um substituto. O governo ainda barganha com o PMDB a
indicação de um nome.
Entre
os técnicos, sejam eles do governo, independentes ou de empresas privadas, há o
consenso de que a situação chegou a esse ponto por falta de planejamento. O
mesmo problema de 2001. O governo perdeu dois anos discutindo um novo modelo
para o setor e, ao implementá-lo, terminou por enfraquecer as agências
reguladoras, desestimular o investimento privado e aumentar as exigências
ambientais. Essa perda de tempo no planejamento é representativa. Usinas como
as hidrelétricas do rio Madeira e a nuclear Angra 3 devem começar a operar em
2013. Se entrassem em funcionamento dois anos antes, a situação seria bem mais
confortável. As soluções, a partir de agora, passam a ser emergenciais. Não dá
mais tempo de construir novas hidrelétricas, a fonte mais barata. O gás
natural, que poderia abastecer dezenas de termelétricas, está em falta e, pior,
depende de outro fator imprevisível: o rumo do governo Evo Morales, na Bolívia.
Restam opções mais caras e poluentes.
Qualquer
que seja a saída, há uma certeza: a energia vai ficar mais cara, e isso será
repassado para todos os setores da economia. A tarifa média de energia elétrica
cobrada das indústrias no Brasil já está mais alta que a de Índia, China,
Estados Unidos e França. Só perde para a da Alemanha. "Os preços estão
subindo 15% ao ano e devem dar mais um salto a partir do ano que vem", diz
Domingos Bulus, presidente da White Martins, fabricante de gases industriais.
Nesse setor, a energia representa 70% dos custos de produção. "Estamos
perdendo competitividade e, no futuro, o país pode perder investimentos",
afirma Bulus. A americana Dow, do setor químico, tem interesse em ampliar suas
fábricas no Brasil. Mas está insegura em relação ao investimento. "O risco
de faltar energia e a alta nos preços não ajudam", diz Antonio Inácio Sousa,
diretor comercial de energia da Dow no Brasil. A empresa já estudou recorrer à
geração própria, mas desistiu em razão de indefinições no preço e no
fornecimento de gás.
A
prolongada falta de investimentos fica mais evidente quando se compara a
infra-estrutura brasileira à de outros países. Tome como exemplo as ferrovias.
Entre os países com grande território, o Brasil apresenta a menor malha
ferroviária, com 28 500 quilômetros de extensão. O campeão são os Estados
Unidos, com 197 000 quilômetros. A Rússia tem 85 000. Na China, o governo
anunciou que até 2020 deverá injetar 200 bilhões de dólares para financiar a
construção de 100 000 quilômetros de estrada de ferro. No Brasil, em dez anos,
foram incorporados 140 quilômetros à rede já existente -- o mesmo que nada. Até
2010, o governo federal deverá investir 7 bilhões de reais na construção de
modestos 2 000 quilômetros de ferrovias.
Risco
crescente
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Probabilidade de faltar energia nos próximos quatro
anos em um cenário de crescimento médio anual do PIB de 4,8%
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2008
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5%(1)
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2009
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6,5%
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2010
|
11,5%
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2011
|
28%
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(1) Limite máximo aceitável
Fontes: Instituto Acende Brasil e PSR Consultoria
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Sem
solução do governo para os gargalos da infra-estrutura, as empresas tentam se
defender do caos do jeito que podem. "Como operadores logísticos, não
recomendamos o transporte aéreo de carga. É melhor ficar mais tempo na estrada
do que enfrentar a incerteza dos aeroportos", afirma Giuseppe De Vicenzo,
diretor-geral da Ceva Logistics, antiga TNT, que administra 6 000 despachos de
carga por mês. Isso significa, por exemplo, gastar 17 dias de caminhão na
estrada entre São Paulo e Manaus, percurso que levaria até 72 horas num frete
aéreo. Segundo cálculo do Coppead, de 2004 a 2006 as empresas aumentaram em 27%
os estoques feitos para compensar atrasos nas entregas de matérias-primas e
produtos acabados. Como resultado, as exportadoras têm sua competitividade
comprometida. A catarinense Cecrisa arca com custo logístico de 2,05 dólares
por metro quadrado no transporte de produtos cerâmicos de sua fábrica até a
costa leste dos Estados Unidos. "Nossos concorrentes argentinos, que estão
mais longe, gastam só 1,71 dólar para fazer a mesma entrega", afirma
Rogério Sampaio, presidente da Cecrisa. "O governo tem de se engajar na
nossa cruzada pela competitividade, senão não haverá saída." Sem aprender
uma lição como essa, o tão sonhado crescimento será apenas uma questão de
vontade do governo.